A Constituição Humana
Medicina Arcana (Teoria): Capítulo 1
I. Conhece-te a ti mesmo:
A palavra "homem" é um termo sintético sob o qual se reúnem vários elementos que diferem essencialmente mas, apesar disso, compõe uma unidade relativa. Falamos do "homem" de forma semelhante com a qual falamos da "natureza", pois o homem é tão complexo como a natureza, sob sua aparente simplicidade [microcosmo: unidade na multiplicidade].
Sendo o objeto da medicina a saúde do homem, é dever inicial do estudante compreender os elementos que constituem o ser humano. Depois, estudar as relações desses elementos e dos outros princípios com os quais o ser humano pode se achar em relação.

Entender a constituição fundamental do homem não é uma tarefa fácil – caso fosse, poderíamos julgar leviano aquele que fixou a inscrição no templo de Delfos: γνῶθι σεαυτόν (t. conhece-te a ti mesmo).
Conforme afirma o sábio Sócrates, no Primeiro Alcibíades, "se conhecêssemos isso [a si mesmo], talvez pudéssemos conhecer como cuidar de nós mesmos, ao passo que se o ignorássemos, não poderíamos conhecê-lo" [129a]. Nos indica pois, este grande homem, que a ciência da cura e do bem estar só se desenvolve a partir deste entendimento.
II. Corpus et Anima
Esclarece-se, primeiramente, haver algo que o homem é, e algo que o homem não é [essencialmente], embora se encubra com o seu nome. Sem entrar querelas por demais complexas, isso pode ser entendido através de simples prova por analogia, como nos ensinou o grande mestre Platão. Vejamos:
Prova nº 1
O sapateiro trabalha o corte com a faca, o estilete e outros instrumentos. Aquele que corta e usa os instrumentos, e aquilo que é usado por ele para cortar, não são coisas diferentes?
Porventura não são também diferentes os instrumentos que o citarista usa para tocar e o próprio citarista?
Tão logo, parece que aquele que usa e aquilo que é usado se tratam sempre de coisas diferentes.
Voltando ao sapateiro, ele não corta apenas com as ferramentas, mas também com suas mãos, e assim faz também o citarista, ao tocar seus instrumentos. Se aquele que usa e aquilo que é usado são coisas diferentes, os sapateiros e os citaristas são, portanto, algo distinto das mãos que utilizam no exercício de seus ofícios. Nessa lógica, se melhor analisarmos, veremos que o homem, portanto, é distinto de seu próprio corpo.
Se o homem não é o corpo, há de ser aquilo que se serve do corpo – e a isto chamamos alma.
Prova nº 2
A propósito do sono, poderemos fazer outra observação importante. Quando dorme, o homem parece se partir em dois pedaços: porquanto o coração bate, os pulmões respiram, e o sangue circula, todavia, o ser humano não está mais sujeito ao amor ou ao ódio, à cólera ou à piedade, porquanto aquilo que habitualmente experimenta esses sentimentos, ou manifesta essas paixões, repousa, está adormecido.
Nota-se, então, que enquanto uma porção do organismo humano continua suas funções, uma outra permanece inativa. Onde está a verdadeira entidade humana em tudo isto? No que dorme ou no que está em vigília?
O senso comum responde de imediato: durante o sono, o homem dorme. Desse modo, o homem é distinto do corpo, que desempenha as suas funções chamadas orgânicas.
O que chamamos homem é dotado da faculdade de sentir, de pensar e de querer. Ora, isso dorme durante o sono e o que fica desperto é uma outra coisa que, independentemente da consciência, se encarrega de manter os movimentos orgânicos. O homem verdadeiro, logo, é aquele que concebemos como dotado de consciência e, sobretudo, da vontade livre que impõe sobre o corpo, i.e., aquilo que chamamos alma.
Poderíamos, certamente, ter poupado qualquer explicação ao simplesmente remeter nossa posição à autoridade das escrituras sagradas, que muito claramente distinguem o corpo da alma. Acredito, porém, que é necessário ao aprendiz absorver a fundamentação dialética básica dessa matéria.
"Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem tornou-se alma vivente." (Gênesis 2,7)
"E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu." (Eclesiastes 12,7)
III. O Homo Totus
Dada a conclusão que acabamos de traçar, impõe-se que, na primeira ordem, quem quer que cuide de seu corpo, está cuidando daquilo que diz respeito a si mesmo, mas não de si mesmo. A verdadeira medicina, porém, não pode cuidar do homem de maneira fracionada, atendo-se apenas ao “homem-máquina” ou ao “homem-alma”, isso porquê, na prática, ambos estão integrados – “essas duas partes do homem estão estreitamente unidas durante a vida e desta união resulta uma ordem de fenômenos cujo conhecimento nos é indispensável”.
O Apóstolo, em sua primeira epístola à igreja de Tessalônica, apresenta uma divisão tripartite do homem — corpo, alma e espírito. No entanto, demonstra que a santificação deve ocorrer de forma unitiva, abrangendo os três aspectos como um só, para que seja completa:
"E o próprio Deus de paz vos santifique completamente; e todo o vosso espírito, alma e corpo sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo." 1 Tessalonicenses 5,23
Essa unidade essencial entre corpo, alma e espírito é chamada na antropologia agostiniana de Homo Totus. Embora sejam distintos, há um desígnio ontológico da alma em se unir com o corpo, e um desígnio ontológico do corpo em se unir com a alma.
“corpus animae cohaerere ut homo totus et plenus sit” [t. que o corpo à alma seja unido, para que o homem inteiro e completo seja] (De Anima et eius origine I, 17, 28).
Os antigos médicos eram muito bem cientes disso. Conforme atesta a história das primeiras civilizações, os primeiros a exercerem a arte da medicina foram os sacerdotes – justamente os homens designados à ordenação da alma.
Isso se deve ao fato de haver relações misteriosas entre a parte maquinal do homem (seu corpo) e a sua parte essencial (sua alma), e também [haver] relações que essas partes detém com mistérios de grau superior.
Entendendo a existência de um vínculo sutil entre os processos materiais e mistérios espirituais, a arte que chamamos de Medicina Arcana tem por objetivo promover o bem-estar físico e anímico do homem. Para isso, utiliza não apenas de processos puramente bioquímicos e fisiológicos, mas também de métodos que operam de forma coordenada com fenômenos superiores e princípios de ordem alquímica.
No próximo texto, exploraremos as diversas escolas que compõem a totalidade da Medicina Arcana (alquímico-fisiológica), seguindo as subdivisões estabelecidas pelo Dr. Paracelso em sua Opera Omnia.
Fonte Principal: Papus, Tratado Elementar de Magia Prática
[voltar ao livro] [acessar o próximo texto]