Resenha: "O Porque de Todas as Cousas", de Andrés Ferrer de Valdecebro (1733)


Introdução

Ao explorar do acervo digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, deparei-me com uma obra de título ambicioso: "O Porque de Todas as Cousas", também grafada sob o título alternativo de "Endelechia da Filosofia Natural e Moral", escrita pelo frade dominicano espanhol Andrés Ferrer de Valdecebro (1620-1680). No conteúdo, o livro se propõe a oferecer explicações sobre uma ampla gama de fenômenos naturais e supranaturais em pouco menos de 200 páginas.

Tratando-se de obra escrita no século XVII e publicada em Portugal no ano de 1733, época em que a Inquisição Portuguesa exercia controle rígido sobre a produção intelectual, a obra recebeu as licenças de circulação expedidas pelo Santo Ofício. Essas autorizações garantiam que o conteúdo estava em conformidade com os ensinamentos da Igreja Católica e que não continha doutrinas heréticas ou subversivas.

Estrutura e Conteúdo

O livro segue o formato de catecismo, sendo organizado em formato de perguntas e respostas. Seus 35 capítulos abrangem uma variedade de temas, e as explicações oferecidas passeiam pelos reinos da metafísica, medicina, teologia, astrologia e lendas medievais, munindo-se dos argumentos disponíveis a época, dos quais se compõe. Embora as explicações sejam simples e diretas, a obra reflete uma visão de mundo fortemente embasada na tradição cristã e escolástica medieval, demonstrando influências do pensamento de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Hipócrates e Empédocles.

Entre os princípios filosófico-científicos que sustentam as explicações do autor, destacam-se a teoria humoral (segundo a qual a saúde humana depende do equilíbrio entre os quatro humores corporais: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra), a iatroastrologia (que relaciona a medicina à influência dos astros) e a teoria dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar), concebida por Empédocles e desenvolvida ao longo da tradição aristotélica.

Visão de Mundo

O livro é um reflexo de um período no qual ciência e religião se misturavam em solução homogênea, no qual a ordem natural era explicada por meio da teologia e da tradição clássica. Considerado esse ambiente, as afirmações do autor revelam um pensamento que, para os leitores contemporâneos, soa como digno de fantasia — mas que era crível não apenas para o homem comum da época, mas também para a elite intelectual acadêmica e eclesiástica. Por exemplo, Ferrer de Valdecebro menciona a existência de uma tribo de hebreus com cauda (Questão 65) e rumores sobre uma nação de gigantes no Oriente (Questão 61). Tais relatos eram comuns num tempo em que os relatos antigos e a tradição oral carregavam ainda credibilidade.

A obra também aborda temas controversos sobre a mulher e o corpo humano. O autor reproduz concepções aristotélicas e tomistas segundo as quais a mulher é um homem imperfeito, uma espécie de ser incompleto, e, por isso, pode ser corretamente chamada de "monstro" (Questão 43) — termo que, no contexto filosófico, referia-se a qualquer anomalia em relação ao modelo ideal de ser humano. Além disso, o autor agrupa dentro desse conceito outros indivíduos que fugiam da figura humana ideal, como anões, hermafroditas, gigantes, eunucos e pessoas com desproporções corpóreas (como a suposta tribo de hebreus com cauda, que pode ter se originado de alguma má-formação semelhante à espinha bífida).

Questões Polêmicas

É interessante notar que algumas das respostas apresentadas por Ferrer de Valdecebro poderiam ter sido motivo de censura pela Inquisição, ou, pelo menos devem soar estranhas aos católicos que, ainda hoje, se possuem por um espírito farisaico. O autor defende, por exemplo, a regência astrológica sobre etapas da geração humana, afirmando que bebês nascidos de oito meses tendem a morrer devido à influência da Lua, um planeta frio (Questão 8), enquanto bebês de sete meses teriam melhores chances de sobrevivência devido a uma configuração astrológica mais favorável (Questão 9).

Outro ponto notável é sua afirmação de que a alma só é infundida no feto aos 40 dias para o homem e aos 80 dias para as mulheres (Questão 5). Embora o aborto seja hoje condenado pela Igreja desde a concepção, a questão sobre o momento no qual ocorre a infusão da alma-racional era um debate teológico presente na Idade Média, e a ideia sustentada pelo autor se baseia em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, que compartilhavam da posição descrita.

Conclusão

Embora "O Porque de Todas as Cousas" apresente muitas afirmações que hoje soam ultrapassadas ou fantasiosas, sua leitura proporciona um valioso testemunho da mentalidade do século XVII e do modo como o conhecimento era estruturado sob a influência da religião e da tradição clássica. O formato da obra em perguntas e respostas confere uma leitura fácil e agradável, por mais que a grafia portuguesa da época estranhe um pouco aos olhos, e a linguagem do autor parece direcionada ao público comum. Ainda que não se trate de uma obra de ficção, o olhar místico da realidade — comunicado por um frade de 3 séculos atrás — nos transporta a um universo fantástico e capaz de supreender. A noção de que a mulher deve ser considerada um “monstro”, por exemplo, emerge com tamanha inocência que mais espanta do que ofende — há algo de encantador na naturalidade com que argumentos hoje considerados "incorretos" são apresentados. Da mesma forma, a primeira questão proposta pelo livro — “Por que os animais nascem vestidos e o homem, nu?” — já é capaz de levantar risos ao leitor contemporâneo.

Assim, mais do que um tratado explicativo sobre "todas as cousas", o livro de Andrés Ferrer de Valdecebro serve como um espelho da cosmovisão de seu tempo. Para os que ficaram interessados, eis o link para acessar a obra: https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1349961/drg1349961.pdf.



[voltar ao livro]                                                                                                                                     [acessar o próximo texto]