Introdução: Sobre as Hipóteses de Surgimento da Filosofia
Muito se debate, sem um consenso definitivo, sobre a origem e os limites da filosofia enquanto ciência ou disciplina. Esse tipo de investigação, voltada à indagação da natureza da filosofia, constituí o que chamamos de “metafilosofia”, ou “filosofia da filosofia”.
No âmbito da sua gênese, tema ao qual pretendo aqui me dedicar em oferecer algumas considerações, existem algumas posições mais ou menos consolidadas que se debruçam sobre a questão de como e onde a filosofia teria surgido.
Do ponto de vista estritamente histórico-geográfico, ou seja, centrado em atribuir um local e um tempo determinados para o surgimento da filosofia — deixando de lado, neste momento, as hipóteses que tratam de sua origem sob a perspectiva do desenvolvimento do pensamento humano (como, por exemplo, a transição do mito ao logos) —, pode-se identificar pelo menos quatro grandes hipóteses, as quais se expõe de maneira breve e carente para que não se tome todo o texto:
Hipótese Ocidentalista:
Esta tese sustenta que a filosofia tem origem exclusiva na Grécia Antiga, especialmente nas cidades jônicas do século VI a.C., como Mileto. Trata-se da hipótese mais amplamente difundida, alinhada à tradição historiográfica iniciada por Aristóteles, que atribuiu a Tales de Mileto o título de primeiro filósofo em sua Metafísica.
Essa visão ramifica-se em diferentes interpretações. Autores como Jean-Pierre Vernant e Giovanni Reale reconhecem, de modo crítico, o papel de fatores sociais e políticos na emergência do pensamento racional grego. Outros, porém, adotam uma leitura mais espiritualizada da origem filosófica, como Ernest Renan, que cunhou a expressão “milagre grego”, sugerindo um desígnio quase divino para o surgimento da filosofia. Tal concepção ecoa paralelos entre a revelação sobrenatural dos hebreus e uma revelação natural atribuída aos gregos, sendo reiterada por pensadores da patrística cristã e neotomistas como Jacques Maritain, e antecipada já por autores pagãos como Numênio de Apameia, que no século II afirmou: “O que é Platão, senão Moisés em grego ático?”
"A Grécia é a única parte do mundo antigo onde a sabedoria do homem encontrou seu caminho, e onde por efeito de um feliz equilíbrio das fôrças da alma e de um longo trabalho para adquirir a medida e a disciplina do espírito, a razão humana atingiu a idade de sua fôrça e maturidade. Por esta razão, pois, o pequeno povo grego aparece entre os grandes Impérios do Oriente, como um homem no meio de crianças gigantes; podemos afirmar que êle é para a razão e para o verbo do homem, o que o povo judeu é para a Revelação e para a Palavra de Deus" — Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia.
Hipóteses Orientalista e Africanista:
Essas abordagens sustentam que a filosofia grega, longe de ser um fenômeno autóctone, teria profundas raízes em saberes e tradições da Índia, Oriente Próximo e África. Segundo essas perspectivas, os gregos teriam herdado conceitos filosóficos fundamentais ao manter contato com essas civilizações, seja por meio de migrações, comércio ou intercâmbios culturais. A filosofia, portanto, já existiria antes de Tales, cabendo aos gregos, no máximo, dar continuidade, sistematização e nova forma a uma tradição mais antiga.
Entre os defensores dessa visão, destaca-se Martin Bernal, cuja obra Black Athena argumenta que os fundamentos da filosofia ocidental derivam de fontes afroasiáticas, desafiando o eurocentrismo predominante na historiografia acadêmica. Outros estudiosos, como August Gladisch e Heinrich Roth, localizam as origens filosóficas, respectivamente, no Oriente Médio — com ênfase na sabedoria mazdeísta — e na Índia, por meio das escolas darśanas.
A hipótese africanista radicaliza essa perspectiva ao afirmar que as origens da filosofia ocidental se encontram prioritariamente na tradição africana, sobretudo no pensamento egípcio antigo. Théophile Obenga defende que o Egito possuía todos os elementos de um sistema filosófico estruturado, e que pensadores gregos como Platão e Pitágoras se beneficiaram diretamente desse saber ao estudarem em solo egípcio. Essa hipótese busca desconstruir narrativas hegemônicas que invisibilizam ou minimizam as contribuições africanas para a formação do pensamento filosófico ocidental.
Hipótese Universalista:
Sustenta que a filosofia não é exclusividade de um povo ou cultura, mas sim uma forma de pensamento presente, em diferentes graus e configurações, em múltiplas civilizações ao longo da história. Essa visão busca relativizar a centralidade da Grécia, apontando para paralelos filosóficos em tradições como a chinesa (com Confúcio e Lao-Tsé), a indiana (com os Vedas, Upanishads e as escolas darśanas) e a egípcia. Filósofos como Karl Jaspers, com sua tese da “Era Axial”, e Wilhelm Halbfass, que compara os sistemas filosóficos indianos e ocidentais, são expoentes dessa abordagem.
Não obstante, Diógenes Laércio, em sua Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres, reconhece a existência de uma forma de sabedoria entre os povos considerados bárbaros. Contudo, alinhado à tradição aristotélica, nega que tal sabedoria possa ser identificada, propriamente, como filosofia no sentido científico que se desenvolveu na Grécia. Em contrapartida, já na Antiguidade, neoplatônicos e neopitagóricos defendiam a tese de que a filosofia grega, especialmente a de Pitágoras, representava uma síntese e continuidade das sabedorias orientais. Segundo essa visão, Pitágoras teria percorrido diversas regiões do Oriente em busca de conhecimento, aprendendo com sacerdotes e sábios locais, antes de se autodenominar filósofo — termo que ele próprio vem a cunhar, o que lhe confere autoridade no que se ao sentido de filosofia.
Neste esboço, proponho delimitar o conceito de filosofia em dois sentidos complementares: um sentido amplo, que abrange toda forma de reflexão sistemática sobre o ser, o mundo e o conhecimento presente em diferentes culturas; e um sentido estrito, que compreende a filosofia tal como se constituiu a partir da tradição grega, com suas particularidades específicas.
A partir dessa distinção, e com base em uma análise tanto histórica quanto filosófica, sustento que cada uma das hipóteses sobre a origem da filosofia corresponde a um desses sentidos, sem que isso implique contradição ou exclusão entre elas. Trata-se, antes, de interpretações distintas sobre um mesmo significante — “filosofia” —, mas a partir de significados diversos, conforme se adote uma compreensão mais abrangente ou mais restrita do termo.
Ademais, retomando o testemunho de Diógenes Laércio, apresento a ideia de que essas duas concepções já se refletiam em tradições filosóficas antigas. Segundo o autor, a filosofia possui uma origem dupla: uma linhagem jônica, que remonta a Tales e Anaximandro, e outra italiota, oriunda de Pitágoras. Ao se adotar como referência a concepção jônica, a filosofia só pode ter uma origem localizada, conforme propõe a hipótese ocidentalista. Por outro lado, se tomarmos como modelo a proposta pitagórica — impregnada de elementos religiosos, éticos e cosmológicos de diversas culturas —, a conclusão será diversa, aproximando-se de hipóteses orientalistas ou universalistas.
Da Corrente Pitagórica, ou a Filosofia em sentido amplo:
Antigamente, os que hoje chamamos de "filósofos" eram denominados simplesmente "sábios". Pitágoras, entretanto, observando que a sabedoria convém propriamente só a Deus, recusou tal título para si. Propôs, então, que fosse chamado "filósofo" — isto é, amigo ou amante da sabedoria —, inaugurando, assim, o uso do termo "filosofia".
A noção que a etimologia e a linguagem nos dão de Filosofia, portanto, é de que esta arte se dá em amar a sabedoria e o filósofo, amando-a verdadeiramente, deve assumir um modo de vida que condiga com a perseguição por este ser amado. Daí, surge a concepção de Pierre Hadot da filosofia como um modo de vida. Sendo a sabedoria própria de Deus, o termo “sábio” teria que referir alguém que já atingira a perfeição no tocante à alma, enquanto filósofo era o estudante desta matéria, conforme expõe Diógenes Laércio tratando da origem do termo.
A etimologia da palavra filosofia revela, portanto, não um saber plenamente alcançado, mas um desejo profundo e constante pela sabedoria. O verdadeiro filósofo, nesse sentido, não se limita a conhecer teorias: deve adotar um modo de vida coerente com a busca desse bem maior, na mesma entrega e dedicação com a qual um amante se entrega à amada. É essa a concepção que Pierre Hadot retoma ao propor a filosofia como "modo de vida". Diógenes Laércio expõe que, neste viés pitagórico, só seria sábio aquele que atingira a perfeição no tocante à alma, ao passo que o filósofo seria o estudante desta matéria.
Deve-se também considerar não apenas o aspecto etimológico da palavra, mas sobretudo o modo de vida e a trajetória do próprio Pitágoras, que cunhou o termo como que adjetivando a si mesmo ou a sua atividade. De acordo com fontes antigas, Pitágoras empreendeu longas viagens ao Oriente. Segundo o que Diógenes Laércio atribui ao escritor Antífon, autor da obra Dos Homens que se Distinguiram em Excelência, Pitágoras aprendeu a língua egípcia e frequentou os santuários da região, sendo iniciado nas doutrinas secretas da teologia egípcia. Conforme relata Jâmblico em Vida de Pitágoras, ele permaneceu por 22 anos no Egito dedicado aos estudos sagrados, em que conheceu todos os seus templos e sacerdotes.
Posteriormente, foi capturado pelos soldados do rei persa Cambises e levado para a Babilônia, onde, segundo a tradição, foi instruído pelos caldeus e pelos magos persas. Ali aprofundou seus conhecimentos em aritmética, música e outras ciências. Somente aos 56 anos retornou a Samos. Torna-se evidente, portanto, que a tradição pitagórica exaltava os saberes orientais como fundamentais na formação do filósofo.
Não se trata, portanto, de uma conjectura moderna ou de um revisionismo progressista a ideia de que a filosofia tenha raízes fora da Grécia. Já na Antiguidade, essa era uma corrente consolidada. Prova disso é que Díogenes Laércio, inicia o primeiro livro de Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres (século III) da seguinte forma:
“Segundo alguns autores, o estudo da filosofia começou entre os bárbaros. Esses autores sustentam que os persas tiveram seus Magos, os babilônios ou assírios, seus Caldeus, e os indianos seus Ginosofistas; além disso, entre os celtas e gálatas, encontram-se os chamados Druidas ou Veneráveis [...] Para os egípcios, Hefesto era filho do Nilo, e com ele começou a filosofia [...]”
Assim, principalmente para os neoplatônicos e pitagóricos, não havia dúvida de que os sacerdotes e sábios orientais já cultivavam uma forma de filosofia. Tal compreensão coaduna-se com os motivos que levaram Pitágoras a cunhar o termo e a fundamentar seu modo de vida.
Essa forma de filosofia aqui delineada é o que denomino "filosofia em sentido amplo", a qual entendo como a expressão mais pura e fiel ao ideal fundacional proposto por Pitágoras.
Assim compreendida, tal filosofia abarca não apenas os gregos, mas também a teologia e os sebayt egípcios, os magos persas, os druidas celtas, os mistérios caldeus, o bramanismo, a escola samkhya, o shakyamuni, Lao Tsé, Confúcio e outros — homens e culturas cujos escritos são contemporâneos ou mesmo anteriores aos dos sete sábios da Grécia. Diante disso, não restam opções senão adotar uma hipótese universalista para a origem da filosofia ou um orientalismo mitigado, em que não se atribua de modo definitivo, quando e onde houve a gênese de tal arte – posto que determinar o momento e o lugar exato em que o ser humano começou a consagrar sua vida ao amor pela sabedoria é, certamente, um empreendimento inalcançável.
Da Corrente Jônica, ou a Filosofia em sentido estrito:
Ao cunhar o termo "filósofo", Pitágoras não vislumbrava a formação de uma disciplina autônoma sob essa designação, tampouco pretendia fundá-la. O termo era, antes, um recurso modesto para descrever a si mesmo, evitando o título presunçoso de "sábio", o qual não se julgava digno de ostentar. Jâmblico, em sua obra Vida de Pitágoras, escrita entre os séculos III e IV d.C., corrobora essa perspectiva ao afirmar:
“Diz-se que Pitágoras foi o primeiro a chamar-se filósofo, em um mundo no qual até então não era uma denominação útil e apropriada, mas uma descrição.”
Não obstante, parece que o impulso orientalista — a tendência de atribuir origens orientais à filosofia — não se evidencia no pensamento grego pré-helenístico. Pelo contrário, os próprios autores clássicos dos séculos V e IV a.C., como Platão e Heródoto, eram muito crentes da originalidade de sua cultura filosófico-científica. Embora reconhecessem influências orientais em domínios como a religião e as artes, insistiam no pensamento racional grego como um fenômeno autóctone. Assim é registrado na obra Os Pré-Socráticos da coleção "Os Pensadores":
"Nos gregos do período alexandrino ou helenístico [...] desaparece essa pretensão de absoluta originalidade: a perda da liberdade política e a inclusão da Grécia nos amplos impérios macedônio e romano alteram a visão que os próprios gregos têm de sua cultura."
Pois bem, se a filosofia tratada anteriormente, entendida no sentido pitagórico, é a filosofia entendida em sentido amplo e diverge do entendimento geral que antecede o período alexandrino, como se define o outro entendimento de filosofia, ao qual chamamos jônico ou em sentido estrito?
Concedendo uma definição breve, a filosofia em sentido estrito, que decorre da escola jônica, é aquela que se constitui como saber sistemático e racional e que se distingue explicitamente da religião, restringindo-se a um campo estritamente limitado, como vem dizer Jacques Maritain: “à investigação científica das verdades puramente racionais”.
Acomodando essas distinções, Diógenes Laércio propôs a teoria da dupla origem da filosofia, como se lê em sua Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres:
"Na realidade, a filosofia teve uma origem dupla, começando com Anaximandro e com Pitágoras. O primeiro foi discípulo de Tales, enquanto Pitágoras recebeu lições de Ferecides."
Laércio prossegue delineando as linhagens sucessórias de ambas as escolas, atribuindo a Platão e Aristóteles a pertença à corrente jônica. Ainda que essa classificação possa ser objeto de ressalvas — as quais não cabe discutir neste momento —, ela evidencia a distinção entre dois modos de compreender a filosofia desde seus primórdios.
Sob essa ótica mais estrita, reconhece-se que diversas civilizações orientais — como a indiana, a chinesa e a persa — produziram sistemas de pensamento profundo e especulativo. Não apenas isso, mas produziram obras que podem, propriamente, ser chamadas de filosóficas, e sábios que podem, propriamente, ser chamados filósofos, mas não produziram, porém, a filosofia enquanto disciplina. Nesses contextos, não houve configuração da filosofia como disciplina autônoma desvinculada da religião, mas sua sabedoria permanecia intrinsecamente vinculada a contextos teológicos e espirituais. Desta razão, os ocidentalistas as chamam de tradições “pré-filosóficas”. Assemelham-se à filosofia estrita no conteúdo e na profundidade, mas não no estatuto epistemológico e institucional que a filosofia grega viria a adquirir.
Para objetar esse ponto de vista — segundo o qual não teria havido, no Oriente, uma constituição autônoma da filosofia como disciplina —, pode-se citar as escolas clássicas do pensamento indiano, conhecidas como darshanas. Dentre elas, destacam-se:
A Mimāṃsā, que se dedica à análise ritualística e ao estudo das influências invisíveis propagadas por meio das ações humanas;
O Sāṃkhya, atribuído a Kapila (séculos V ou VI a.C.), que propõe uma cosmogonia dualista centrada no processo de emanação da realidade a partir de dois princípios fundamentais: Purusha (consciência) e Prakriti (matéria);
O Yoga, que, em sua formulação clássica, sistematiza os meios práticos de realização espiritual por meio da contemplação e do domínio do corpo e da mente;
O Vaiśeṣika, atribuído a Kaṇāda (século IV a.C.), que esboça uma cosmologia baseada na classificação da realidade em categorias fundamentais — substância, qualidade, ação, universalidade, particularidade e inerência — e explica os elementos da matéria visível como formados por partículas indivisíveis e indestrutíveis, análogas aos “átomos”;
O Nyāya, fundado por Gautama (ou Akṣapāda Gotama), que desenvolve uma teoria do raciocínio, da inferência e da demonstração, podendo ser considerado uma forma sistemática de lógica.
Essas doutrinas representam, sem dúvida, tentativas rigorosas e abstratas de sistematizar o conhecimento, o que as aproxima substancialmente daquilo que se entende por filosofia em sentido estrito. Contudo, elas ainda permanecem, em grande medida, ligadas à metafísica bramanista. Longe de se apresentarem como sistemas autônomos e independentes da religião, os darshanas funcionam antes como abordagens complementares de uma mesma visão de mundo, oferecendo diferentes pontos de vista sobre a realidade última proposta pela tradição védica.
Além desses sistemas, pode-se ainda mencionar os sebayt egípcios, os Analectos de Confúcio e os Provérbios atribuídos a Salomão, obras nas quais se encontram princípios éticos, máximas de conduta e reflexões sobre a natureza humana que dialogam, em diversos aspectos, com a filosofia. No entanto, do ponto de vista técnico e histórico, tais textos não se inserem na tradição que fundou a filosofia como disciplina autônoma.
Essas obras pertencem ao que se convencionou chamar de literatura sapiencial — um gênero caracterizado pela transmissão de sabedoria prática e moral por meio de aforismos, ditos populares e reflexões de fundo ético-religioso. A fronteira entre a literatura sapiencial e a filosofia pode ser tênue, mas é delimitável: ela se estabelece no grau de sistematicidade, fundamentação racional e autonomia reflexiva que a filosofia grega veio a consolidar.
Portanto, sob o prisma da filosofia em sentido estrito, a origem da filosofia deve ser situada na Grécia, como fruto da escola de Tales, e encarada como um fenômeno singular de sistematização racional do saber, em ruptura com os discursos mítico-religiosos e com pretensões de universalidade e fundamentação lógica. Essa concepção não nega a existência de sabedoria em outras culturas, mas afirma a especificidade do projeto filosófico grego enquanto disciplina científica do logos.
Conclusão:
A investigação proposta ao longo deste texto buscou examinar as principais hipóteses sobre a origem da filosofia, articulando-as a partir de uma distinção fundamental entre dois sentidos do termo: o sentido amplo e o sentido estrito. Essa distinção se revelou essencial para compreendermos não apenas as diferentes leituras historiográficas sobre o nascimento da filosofia, mas também as divergências de fundo quanto à própria natureza do filosofar.
A filosofia em sentido amplo é entendida como o amor à sabedoria em sua expressão mais originária e existencial, um modo de vida orientado pela busca reflexiva, especulativa e espiritual da verdade. Essa concepção, inspirada no modelo pitagórico, admite como filosóficas diversas tradições de sabedoria antigas — como os sebayt egípcios, os darshanas hindus, os ensinos de Confúcio e Lao Tsé, os provérbios salomônicos, os magos persas e os druidas celtas. Tais tradições compartilham um mesmo impulso fundamental: a dedicação integral ao saber e à formação do ser humano pela via da contemplação, da disciplina e do autoconhecimento.
A filosofia em sentido estrito, por outro lado, surge com a escola jônica e alcança sua expressão madura na tradição socrática e aristotélica. Ela se caracteriza pela constituição de um saber racional, sistemático e autônomo, dissociado da religião e fundado em argumentos lógicos. Nessa perspectiva, a filosofia é compreendida como uma disciplina especulativa do logos, com pretensão de universalidade e validade objetiva, e cuja origem deve ser situada na Grécia Antiga.
A análise aqui desenvolvida permite, portanto, reconciliar as diferentes hipóteses sobre a origem da filosofia sem que se incorram em contradições. O que está em jogo não é apenas o "onde" ou o "quando" a filosofia teria surgido, mas sobretudo o "como" e o "em que sentido" a definimos. Se por filosofia compreendemos uma disposição existencial voltada à sabedoria, então ela é universal e multiforme, presente em diversas culturas antigas. Se, por outro lado, entendemos a filosofia como disciplina rigorosa e autônoma do logos, sua origem deve ser reconhecida como um fenômeno histórico e culturalmente localizado.
Reconhecer essa distinção conceitual não é fragmentar a filosofia, mas antes ampliar nossa compreensão sobre sua riqueza e pluralidade. A filosofia, como todo empreendimento humano de grande profundidade, possui uma história que é simultaneamente unidade e diversidade, origem e desdobramento, raiz e metamorfose. Tal compreensão, enfim, nos permite abandonar dicotomias reducionistas e afirmar que a filosofia não começa em um único ponto, mas floresce em várias partes do mundo, com formas distintas de se relacionar com o saber, com o sagrado e com a razão.